Sin título-2 


DOI: https://doi.org/10.37811/cl_rcm.v6i3.2577      

 

Memória de rostos

 

Dr. Fabiano de Abreu Agrela Rodrigues[1]

[email protected]

 

 

RESUMO

A memória é uma importante e complexa consolidação que integra as funções cognitivas superiores. Os seres humanos são constituídos de múltiplos elementos adquiridos ao longo da sua história evolutiva, conservando, individualmente certa autonomia através de elementos que atuam no funcionamento do organismo. O desenvolvimento cognitivo, junto com a relação à quantidade de rostos que um indivíduo vê durante a vida, e com a atividade dos neurônios, gera diferenças na memória de rostos entre os indivíduos. Portanto esse estudo tem como objetivo entender através de um comparativo entre moradores de regiões menores como vilas portuguesas possuem uma maior capacidade de memorização de rostos enquanto moradores de regiões maiores e mais populosas, no Brasil, possuem menos dessa capacidade. Resultados de testes de memória realizados por diferentes autores em diferentes países mostram que as pessoas têm uma recordação significativamente maior relacionada a uma história emocional do que neutra. Com isso foi possível concluir que cidades mais populosas apresentam maiores índices de ansiedade, transtorno que altera as funções do cérebro como a amígdala cerebral e o hipocampo, aumentando a dificuldade de memorização de rostos. Além disso, o cérebro por uma questão de economia de energia, se adapta a não necessidade de memorizar rostos pois isso não nos coloca em risco de vida,  como sugere através da ansiedade, então não é uma necessidade à sobrevivência e pode ser descartado. Em relação à formação da memória de rostos, pode-se inferir que ela está associada a diferentes fatores sociais, de instrução, gênero e idade. E que esta diferença está associada primordialmente ao desenvolvimento cerebral do hipocampo, do córtex pré-frontal e à ação da amígdala e das ondas Theta.

 

Palavras-Chave: memoria; rostos; memória de rostos.

 

Correspondencia: [email protected] 

Artículo recibido: 15 mayo 2022. Aceptado para publicación: 30 mayo 2022.

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Como citar:  Agrela Rodrigues, F. A. (2022). Memória de rostos. Ciencia Latina Revista Científica Multidisciplinar, 6(3), 4511-4525. DOI: https://doi.org/10.37811/cl_rcm.v6i3.2577          

Face memory

 

ABSTRACT

Memory is an important and complex cognitive function that integrates the higher cognitive functions. Human beings are made up of multiple elements acquired throughout their evolutionary history, individually preserving a certain autonomy through elements that act in the functioning of the organism. Cognitive development, along with the relationship with the amount of faces an individual sees during life, and the activity of neurons, generates differences in the memory of faces among individuals. Therefore this study aims to understand through a comparison whether residents of smaller regions such as villages have a greater ability to memorize faces while residents of larger and more populated regions have less of this ability. Results from memory tests conducted by different authors in different countries show that people have significantly higher recall related to an emotional story than a neutral one. With this it was possible to conclude that more populated cities have higher rates of anxiety, a disorder that alters brain functions such as the brain amygdala and hippocampus, increasing the difficulty of memorizing faces. Moreover, the brain, as a matter of energy saving, adapts itself to not need to memorize faces because this does not put us at risk of life, so it is not a necessity for survival and can be discarded. Regarding the formation of the memory of faces, it can be inferred that it is associated with different social factors, education, gender and age. And that this difference is associated primarily with the brain development of the hippocampus, the prefrontal cortex, and the action of the amygdala and theta waves.

 

Key-words: memory; faces; memory of faces.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

As memórias são cruciais na formação da identidade e como guias para comportamentos futuros, haja vista que são adquiridas através de experiências. Sendo assim imprescindíveis para a sobrevivência e adaptação dos indivíduos ao meio. De maneira bastante simplificada, a memória nada mais é do que a permanência de algo aprendido, uma vez que consiste na aquisição, conservação e evocação de determinadas informações adquiridas através dos diversos sistemas sensoriais. Assim, todos os conhecimentos de um ser humano são provenientes de experiências mantidas pela memória, como por exemplo, uma fórmula matemática, uma letra de música, habilidades como andar de bicicleta, e até mesmo o reconhecimento dos rostos das pessoas e a associação aos seus nomes, características, ou funções na sociedade (Zinn, 2017).

A memória é uma importante e complexa função cognitiva que integra as funções cognitivas superiores. Estudos sugerem que questões relacionadas à memória, como o aprendizado e armazenamento de novas informações causam alterações estruturais no sistema nervoso (Dalmaz; Netto, 2004).

As funções cognitivas superiores permitem o reconhecimento de objetos, a identificação de componentes relevantes, o tratamento de estímulos complexos, o armazenamento de aspectos da informação, o planejamento e a execução de respostas. Além da memória, os componentes das funções cognitivas superiores são representados por sistemas neuronais distintos, e atuam de maneira interdependente, sendo eles: a atenção, a linguagem, a coordenação motora, a percepção, e as funções executivas. Alterações em quaisquer desses componentes podem ser facilmente relacionados pelo paciente à anamnese, como “problemas de memória”. Diferentes classificações são utilizadas para caracterização e hierarquização das memórias, sendo que elas podem ser distinguidas tanto do ponto de vista temporal, quanto do ponto de vista modal (Vilas, 2014).

Uma vez que os processos de armazenamento são dependentes do tempo, as memórias podem ser classificadas quanto à sua duração em memória de curto prazo e memória de longo prazo. A memória de trabalho (curto prazo) depende do córtex pré-frontal e envolve a manutenção de uma quantidade limitada de informações, podendo ter duração que varia desde frações de segundos até poucos minutos, e não deixa traços. Já as memórias de longo prazo dependem das mesmas estruturas encefálicas, do hipocampo e córtex temporal para a sua formação. Os mecanismos moleculares de ambas se diferenciam enquanto a memória de curto prazo permanece por minutos até algumas horas, a memória de longo prazo é consolidada, e para tal, envolve a síntese de novas proteínas para que seja fixada (Zinn, 2017).

Em relação ao conteúdo, as memórias podem ser declarativas (ou explícitas) e não declarativas (ou implícitas). A memória declarativa diz respeito àqueles fatos e eventos que podem ser levados à mente de maneira verbal ou na forma de imagem. Esse tipo de memória refere-se a palavras, objetos, cenas, faces e histórias, e está relacionada à ação do lobo temporal medial, em especial do hipocampo. As memórias explícitas podem ainda ser subdivididas em memórias semânticas, que se referem a conhecimentos gerais, e memórias episódicas, que estão relacionadas à biografia do indivíduo. A memória não-declarativa, por sua vez, compreende informações adquiridas no aprendizado de habilidades motoras, sensoriais e cognitivas, e de outros conhecimentos expressos através de performance, e não de lembrança. A memória implícita envolve estruturas como cerebelo e amígdala (Zinn, 2017).

Apesar do reconhecimento do papel das experiências na formação das memórias, e no fato de que o reconhecimento de rostos seja parte da memória declarativa, Germano (2018) apresenta estudos com pacientes com prosopagnosia, doença que acarreta em incapacidade total ou parcial de reconhecimento de rostos, que inferem que o reconhecimento facial esteja relacionado à área fusiforme facial. Uma vez que indivíduos que sofrem lesões nesta área do cérebro tendem a desenvolver a doença. Segundo o autor, 1% da população mundial tem uma “habilidade especial” para reconhecer e guardar informações sobre rostos sendo estes chamados de “super-reconhecedores”.

 Em vista da complexidade no processo de formação da memória, em especial no que tange o reconhecimento da face humana, envolvendo diferentes mecanismos moleculares e celulares, além da participação de diversas estruturas cerebrais, o presente estudo traçou como objetivo realizar uma pesquisa qualitativa através de observação e de indagação apoiadas por ampla revisão bibliográfica referente à memória de rostos, a fim de suscitar o importante debate acerca do tema por parte não só da comunidade científica, mas também do público leigo, uma vez que é um assunto de relevância social.

 

2. METODOLOGIA

Para a elaboração do estudo utilizou-se um método qualitativo. Uma das etapas consistiu na pesquisa bibliográfica com metodologia exploratória, tratando-se de uma revisão de material bibliográfico existente, primordialmente em bases de dados digitais. A metodologia adotada trata-se de um dos principais passos para qualquer pesquisa, e incluiu a seleção de diversas fontes e informações, trazendo visões de outros teóricos, estudos e documentos que encorpam o conhecimento em torno da memória, com foco na memória de rostos.

A pesquisa envolveu questões relacionadas à observação da temática, indagação acerca do tema, interpretação dos dados coletados, reflexão e análise.

Uma vez que o método qualitativo analisa o conjunto do discurso entre os sujeitos e a relação de significado para eles conforme contextos culturais, ideológicos e sociológicos, o estudo associou à extensa revisão na literatura disponível, metodologia de investigação focada na questão bem definida, a fim de identificar, selecionar, avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis. Para tanto foram realizadas observações e coletas de dados através de entrevistas semiestruturadas com pessoas em vilas e aldeias portuguesas e das capitais brasileiras Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais), São Paulo (Estado de São Paulo) e Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro).

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

O elemento norteador do presente estudo partiu das primeiras premissas da base metodológica adotada: a observação da temática e a indagação acerca do tema. O surgimento da temática deu-se justamente em função da sua observação, que foi corroborada com a realização das entrevistas.

Como resultado da execução das entrevistas, todos os interlocutores portugueses mostraram lembrar-se dos rostos com maior frequência do que os brasileiros, que, por sua vez, lembravam-se dos rostos com frequência menor. Além disso, as entrevistas semi-estruturadas, conduzidas pelo pesquisador de maneira a soar como uma conversa amigável junto dos interlocutores, permitiu pontuar questões relevantes, que inflamaram ainda mais a pesquisa bibliográfica. Entre elas estão que muitos dos interlocutores brasileiros relataram ficar com vergonha por não reconhecerem rostos; que as pessoas que não são reconhecidas parecem decepcionadas com isso; e que há uma percepção errada de alguns portugueses em relação a não darem importância em se lembrar.

Para as entrevistas, o público trabalhado foi heterogêneo em relação à idade, portanto esse não apresenta-se como um viés relevante.

A memória social foi crucial no desenvolvimento das sociedades humanas. As relações humanas dependem de interações sociais, que necessitam de capacidades importantes para o domínio social efetivo, entre os quais, o reconhecimento social. O processamento social em humanos depende ainda do reconhecimento da face e da voz, que são processados de forma diferente de objetos inanimados no cérebro (Zinn, 2017).

Por isso, uma das habilidades mais solicitadas e requisitadas nas avaliações psicológicas é a memória. No entanto, no Brasil não se identifica na atualidade nenhum instrumento em condições psicométricas que possibilite a avaliação da habilidade de reconhecimento de rostos. O teste de Memória Visual de Rostos (MVR) foi traduzido para o português por Lorenzatto et al. (2002), e é composto de duas partes: a primeira de memorização, com doze itens compostos de desenhos de rostos que são apresentados ao sujeito do teste, juntamente com as informações referentes ao nome, sobrenome, profissão e procedência daquele rosto. A segunda parte é composta de vinte itens referentes às informações apresentadas na etapa anterior, as quais o examinando deve marcar com base na lembrança da primeira etapa. O objetivo do instrumento está em avaliar a capacidade do examinando para lembrar de dados pictóricos e verbais atribuídos aos rostos. Além de traduzir o teste, os autores o aplicaram a dois grupos heterogêneos entre si: homens profissionais da área de vigilância patrimonial e universitários de ambos os sexos sem experiência profissional. No entanto, os resultados mostraram-se ainda preliminares para a verificação da validade, especialmente de critério fundamental para comprovação de sua eficácia, sendo necessários novos estudos para obtenção de novos resultados para a construção dos procedimentos normativos.

O teste de MVR avalia a capacidade do indivíduo em recordar rostos e informações associadas a eles, configurando-se em um instrumento que avalia a memória de curto prazo. Quanto às evidências de validade do teste no Brasil, foi realizado um estudo que verificou que a média no MVR tende a diminuir com o avanço da idade, o que é esperado em testes que avaliam a memória. Também foram observadas diferenças quanto ao sexo e nível de escolaridade, que interfere significativamente no desempenho do teste, sendo que à medida que a escolaridade aumenta, tende a aumentar também a pontuação no MVR. Foi constatada evidência de validade convergente entre o MVR e o Teste Pictórico de Memória e entre o MVR e os subtestes da Escala Wechsler de Inteligência para adultos relacionados à avaliação de memória. Foi encontrada evidência de validade de critério entre grupos de dependentes e não dependentes químicos, como também em um grupo que possuía Síndrome de Down e outro sem a síndrome (Leme et al., 2012).

Essa correlação entre fatores culturais e de instrução com a capacidade de memória visual de rostos pode preencher a lacuna deixada na pesquisa realizada através das entrevistas, onde os interlocutores portugueses declararam esquecer de rostos com menor frequência do que declararam os brasileiros entrevistados.

Uma importante função no reconhecimento de rostos foi explorada por Ceconello et al. (2022), que abordou a temática em relação ao sistema judicial brasileiro. Os autores salientam que um falso reconhecimento de uma pessoa pode levar à condenação de um inocente, e propõe um método efetivo de diminuir esse falso reconhecimento por meio do alinhamento, procedimento no qual o suspeito é apresentado em conjunto com não suspeitos similares ao suspeito. Em seu experimento, os suspeitos foram identificados com maior frequência que suspeitos inocentes e do que não suspeitos, e não suspeitos foram reconhecidos em maior frequência do que suspeitos inocentes.

Apesar do baixo número de publicações científicas nesse assunto específico, outras fontes de informação, externas à comunidade científica, parecem achar o tema relevante, sendo encontradas inúmeras reportagens e publicações referentes à memória de rostos em sites de notícias. Como exemplo, Germano (2018) produziu uma matéria denominada “Você é um super reconhecedor de rostos?” para a Revista Super Interessante, na coluna de comportamento. O que infere que o conhecimento científico que relaciona a memória à personalidade é difundido entre a comunidade leiga, mesmo que esta não tenha a compreensão dos complexos mecanismos que envolvem o processo de formação da memória, envolvendo diferentes mecanismos moleculares e celulares, além da participação de diversas estruturas cerebrais.

Essa relação entre comportamento e memória já é conhecida de longa data, e pode ser explicada através da plasticidade neural, cujo principal fator de estímulo é a experiência. As funções e as moléculas específicas de alguns neurônios se transformam e se adaptam quando o indivíduo é apresentado a uma nova informação. Isso indica que a atividade neural resultante da interação do organismo com o meio externo pode modificar a estrutura do sistema nervoso em qualquer período da vida, mesmo após a maturidade. Assim, aprendizado e plasticidade são interdependentes e se pode concluir que a experiência, ao modificar o comportamento, está modificando algumas sinapses no sistema nervoso, ou vice-versa. Em decorrência, postula-se que as mudanças plásticas possam ser os loci responsáveis pelo armazenamento da memória.  (Dalmaz; Netto, 2004).

Voltando ao conteúdo de interesse à comunidade não científica, uma matéria publicada pela BBC (BBC, 2013), intitulada “Por que as mulheres se lembram melhor do rosto das pessoas? ” Faz referência a um estudo de um grupo de cientistas canadenses, que apontou que as mulheres podem ter memória superior aos homens quando se trata de reconhecer rostos e ligar fisionomias às pessoas certas. O motivo, segundo os pesquisadores, é que as mulheres prestam mais atenção às feições das pessoas com quem estão falando. Segundo a matéria, as mulheres se fixam mais do que os homens nos traços faciais, porém esta estratégia funciona completamente à margem da consciência. A pesquisa levanta a hipótese de que essas diferenças de mecanismos entre os dois gêneros se dão pelo maior interesse feminino nas relações de interação social.

Existem evidências científicas que serão relatadas no decorrer da presente revisão bibliográfica, que trazem resultados semelhantes ao exposto na matéria da BBC, onde a memória feminina relacionada às lembranças é superior à masculina, fazendo com que mulheres tenham melhor desempenho do que homens no reconhecimento de rostos.

Outra matéria relacionada à memória para rostos foi publicada no website Olhar Digital, com a chamada “Como funciona a memória quando o cérebro vê um rosto familiar”. Na matéria, Bulhões (2022) cita um estudo que analisou como as áreas do cérebro responsáveis pela memória são acionadas ao olhar para um rosto. Os pesquisadores registraram as atividades das ondas Theta no cérebro, que são ondas elétricas criadas no hipocampo e ativas no processamento de informações e na formação de memórias. Ao mostrar diferentes imagens a um grupo de indivíduos, pode-se perceber que células da amígdala, área do cérebro relacionada com o sistema emocional, eram mobilizadas no momento em que eram observados rostos humanos, desencadeando a atividade de criação de memória. E quando isso ocorria, o padrão das ondas Theta no hipocampo era reiniciado ou redefinido.

A relação dessas ondas Theta advém da comunicação entre neurônios, que pode provocar alterações no potencial elétrico da membrana celular, oscilando entre negativo ou predominantemente positivo. O somatório do sinal elétrico provocado por essas oscilações pode ser detectado em exames de eletroencefalograma, o que torna possível o estudo de padrões elétricos associados a atividades cognitivas. Assim, percebe-se que a memória está intimamente relacionada à eletrofisiologia (Farias, 2017).

Voltando à matéria de Bulhões (2022), há indícios de que quando a ação da amígdala é rápida, existe maior chance de memorização do rosto, enquanto que a ação lenta pode indicar ou baixa memorização, ou que é um rosto conhecido, e, por isso o hipocampo não precisa ser reativado. Por fim, esses resultados inferem que se as ondas Theta são deficientes, o processo desencadeado pela amígdala em resposta aos rostos pode não ocorrer.

A banda teta é a banda de eletroencefalograma mais frequentemente relacionada à memória, pois está fortemente relacionada com a codificação das informações e com a integração de regiões necessária para o processo mnemônico. Estudos na formação hipocampal realizando testes em ambientes virtuais mostraram que a banda teta está relacionada à memória espacial e à movimentação corporal, pois o disparo das células de localização e parte da atividade na região pré-frontal são moduladas por estas frequências (Belham, 2013).

O início da formação de uma memória se dá através da fase de aquisição (ou aprendizagem), que ocorre na exposição a uma nova informação. A fase seguinte é a de consolidação, e refere-se ao armazenamento dessa informação recém adquirida. A última fase é a de evocação, e faz referência ao acesso à informação armazenada, que passa por um processo denominado reconsolidação, tornando-se novamente lábil (Zinn, 2017).

Os eventos bioquímicos relacionados com a formação da memória podem ser regulados logo após a fase de aquisição, por meio de mecanismos hormonais e neuro humorais relacionados ao estresse e à ansiedade, modulando sinapses GABAérgicas, noradrenérgicas e colinérgicas. E, ainda, vias nervosas relacionadas ao controle do humor também podem interferir na formação da memória, incluindo as vias dopaminérgicas e serotonérgicas (Dalmaz; Netto, 2004).

Além disso, os índices de ansiedade em regiões de maior população como grandes centros, é maior quando comparada a regiões menores com uma menor população, portanto a população de regiões maiores possui uma maior chance de ter alterações em regiões do cérebro como a amígdala cerebral e o hipocampo, dificultando ainda mais a memória de rostos (Silva; Paiva, 2014).

As emoções melhoram a memória declarativa (aquela para fatos, idéias e eventos, e toda a informação que pode ser trazida ao reconhecimento consciente e expressa através da linguagem) através da ativação da amígdala (um conjunto de núcleos nervosos situados nos lobos temporais) importância da amígdala na mediação de memórias emocionais (Dalmaz; Netto, 2004)

Resultados de testes de memória realizados por diferentes autores em diferentes países mostram que as pessoas têm uma recordação significativamente maior relacionada a uma história emocional do que neutra. Existe uma correlação entre a recordação dos itens emocionais e a ativação da amígdala direita, através da taxa metabólica de glicose. Portanto, em princípio pode-se dar indícios de danos ou prejuízos em áreas da amígdala (mais especificamente da amígdala direita observando o desempenho atingido ao responder o teste de memória emocional (Pereira; Nunes, 2004).

Os seres humanos são constituídos de múltiplos elementos adquiridos ao longo da sua história evolutiva, conservando, individualmente certa autonomia através de elementos que atuam no funcionamento do organismo. A memória é feita de condicionamentos, de hábitos e de aprendizagens complexas mais ou menos conscientes. Os seres humanos possuem diferentes memórias, entre elas, uma memória dos rostos, e cada uma dessas memórias sensoriais é, por si só, plural. Sob o ponto de vista antropológico pode-se dizer, inclusive, que a memória é social em sua acepção clássica, visto que é fortemente modulada pelos quadros sociais, muito frequentemente sob a ação de efeitos não-voluntários que são favorecidos pela extraordinária plasticidade do cérebro. Desde o nascimento, o indivíduo recebe as digitais do meio social. Por exemplo, um ambiente social desfavorável na primeira infância é associado a uma redução do volume do hipocampo, região cerebral fortemente implicada na formação e evocação das lembranças. Enquanto que o apoio materno precoce da criança é associado ao aumento do volume do hipocampo em idade escolar (Candau, 2012).

Os déficits sociais podem ocorrer em função do processamento deficiente de faces e emoções. Pacientes com esquizofrenia, por exemplo, tem deficiente interação entre o sistema de recompensa dopaminérgico, a amígdala disfuncional e o neurohormônio ocitocina, que juntos geram um meio neural que atribui incorretamente importância emocional a estímulos ambientais (Zinn, 2017).

A ativação da cascata da via de sinalização na amígdala tem papel chave no processamento da memória, sendo um passo necessário à sua consolidação (Zinn, 2009). Segundo informações compiladas por Zinn (2017), a exploração da relação da amígdala com a memória social está associada ao hipocampo, que é a principal estrutura envolvida na consolidação das memórias declarativas.  A amígdala medial sofre ação da ocitocina no reconhecimento social, e parece agir apenas na aquisição da memória de reconhecimento social, enquanto a vasopressina atua nas fases de aquisição e consolidação deste tipo de memória. Hormônios sexuais agem indiretamente, promovendo a síntese da ocitocina e da vasopressina. A amígdala também envia projeções para o córtex entorrinal (que recebe projeções também de outras áreas modulatórias), que por sua vez é a porta de entrada para a formação hipocampal. Estudos propõem que o hipocampo e o córtex pré-frontal participem da memória de reconhecimento social, estando ambos interconectados com regiões envolvidas na regulação da emoção e processo de recompensa e punição. A associação entre alterações do comportamento social e danos no córtex pré-frontal e no hipocampo tem sido estudada, demonstrando que estas estruturas estão envolvidas com a interpretação não-verbal de informações sociais e na tomada de decisões.

Também há sincronia entre as regiões em banda alfa e em teta que sugerem relação com a integração entre as estruturas de ativação elétrica no córtex pré-frontal e na formação hipocampal. Ainda em relação às ondas teta, a variação das frequências e amplitudes das ondas cerebrais medidas por eletroencefalograma geram padrões já conhecidos, tais como as ondas delta (1-4Hz), teta (4-8hz), alfa (8-13Hz), beta (13-30Hz) e gama (30-70Hz). Em estudos sobre cognição, é possível comparar as amplitudes e frequências das diferentes regiões cerebrais exibidas pelo indivíduo sob avaliação eletroencefalográfica em momentos diferentes do teste (Belham, 2013).

Em estudo realizado por Belham (2013), a atividade da banda teta foi maior para os jovens em relação aos idosos e para as mulheres em relação aos homens. No entanto, a comparação entre os gêneros mostrou diferenças em cada categoria de estímulo. Na categoria geométrica, houve maior ativação para as mulheres nas áreas parietal esquerda e occipital direita. Na neutra, maior atividade nas mulheres nas áreas frontal esquerda e occipital direita. Na positiva, maior ativação para as mulheres na área frontal esquerda. Além disso, para as bandas alfa e teta, a ativação na região frontal central foi significativamente maior em jovens do que em idosos em todas as categorias de estímulo. Esse é um viés interessante para se analisar a relação da memória entre os entrevistados, e pode explicar as informações supracitadas, trazidas por Leme et al., 2012 em avaliação de teste MVR, onde mulheres e jovens tiveram melhores resultados do que homens e pessoas mais velhas.

Outro fator que altera as condições de memória de rostos, é o nosso cérebro se adaptar a não necessidade de gravar rostos já que isso não é algo que coloca a nossa vida em risco como no passado, relacionando à realidade atual, portanto, não é uma necessidade para sobrevivência e o cérebro por uma questão de economia de energia para de memorizar. Além disso, quanto maior o número de rostos diferentes que as pessoas entram em contato ao longo do tempo, maior é a chance dessa memória de rostos ser descartada, portanto moradores de vilas e cidades pequenas convivem com menos rostos diferentes, portanto possuem maior memória, enquanto pessoas que vivem em cidades populosas convivem com mais rostos diferentes e, portanto, memorizam menos esses rostos.

Outro fator que corrobora isso, é que quando uma pessoa mora em uma vila com poucas pessoas, e ela se encontra com um rosto novo, é causado um impacto emocional por ser algo novo e diferente, portanto ela tem maior chance de memorizar esse rosto. Como mostra o estudo que entrevistou um grupo de pessoas de uma vila portuguesa onde viviam poucas pessoas e entrevistou outro grupo de pessoas que morava em cidade grande no Brasil e estavam se mudando para essas vilas portuguesas, e mostrou que os brasileiros tinham maior dificuldade em reconhecer rostos, enquanto as pessoas da vila já reconheciam os rostos mais facilmente, em decorrência da relação com a adaptação do cérebro em descartar memórias de rostos excessivos ao longo da vida, então como as pessoas da vila veem menos rostos, elas possuem maior espaço livre para armazenamento de rostos, portanto reconhecem mais os rostos.

Belham (2013) também traz outras questões relacionadas à idade e às diferenças entre gêneros, que podem fornecer explicações. Em relação à idade, há o afinamento das camadas do córtex em idosos, principalmente no lobo pré-frontal, e também a diminuição dos níveis do fluxo sanguíneo cerebral. Já em relação ao gênero, há o fato de que mulheres parecem ser mais emotivas que homens e tendem a classificar imagens negativas com maior grau de alerta, o que pode gerar diferenças na sua memorização.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de as entrevistas realizadas acerca da memória de rostos em duas diferentes sociedades suscitaram o debate em torno dessa questão, a hipótese relacionada a essa maior habilidade por parte dos portugueses (ou dos europeus) em comparação aos brasileiros (ou sul americanos) não pode ser comprovada. Isso se deu em função de não haver pesquisas relevantes na área debatendo essa questão. No entanto, o presente estudo, pioneiro no tema, propõe uma provocação à comunidade científica em relação ao assunto aqui abordado, haja vista que a memória e o desenvolvimento cerebral são influenciados por inúmeras questões sociais e culturais. E por esse motivo é de suma importância trabalharmos questões relacionadas à neurobiologia de maneira fragmentada nas diferentes sociedades e culturas, uma vez que a população mundial não é um grupo heterogêneo de indivíduos no que tange o viés sociocultural.

Em relação à formação da memória de rostos, pode-se inferir que ela está associada a diferentes fatores sociais, de instrução, gênero e idade. E que esta diferença está associada primordialmente ao desenvolvimento cerebral do hipocampo, do córtex pré-frontal e à ação da amígdala e das ondas theta. No entanto, apesar da investigação das ondas theta sobre os efeitos da memória, seus mecanismos de ação, características eletrofisiológicas e fatores que podem influenciar os mecanismos de codificação e evocação ainda não estão bem elucidados.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZINN, C. G. A via de sinalização NO/GMPc/PKG na amígdala basolateral desempenha um papel fundamental na consolidação de memórias aversivas em ratos. 2009. Dissertação apresentada como requisito a obtenção de grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Medicina e Ciências da Saúde, Área de concentração Neurociências, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 57p.

ZINN, C. G. Modulação da memória de reconhecimento social pelos sistemas noradrenérgico e dopaminérgico em diferentes estruturas cerebrais: o metilfenidato e o aprendizado dependente de estado. 2017. Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Medicina e Ciências da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 148p.

 

 



[1] PhD em neurociências, mestre em psicologia, licenciado em biologia e história; também tecnólogo em antropologia com várias formações nacionais e internacionais em neurociências. É diretor do Centro de Pesquisas e Análises Heráclito (CPAH), Cientista no Hospital Universitário Martin Dockweiler, Chefe do Departamento de Ciências e Tecnologia da Logos University International, Membro ativo da Redilat - La Red de Investigadores Latino-americanos, do comitê científico da Ciência Latina, da Society for Neuroscience, maior sociedade de neurociências do mundo nos Estados Unidos e professor nas universidades; de medicina da UDABOL na Bolívia, Escuela Europea de Negócios na Espanha, FABIC do Brasil, investigador cientista na Universidad Santander de México e membro-sócio da APBE - Associação Portuguesa de Biologia Evolutiva.